quinta-feira, abril 29, 2010

Ovídio Martins, o poeta-profeta

Completam-se hoje 11 anos do passamento de um dos nossos poetas maiores, Ovídio Martins. Não tive o prazer de privar-me com ele, mas sempre que o via na rua olhava para ele com muito respeito, admiração e uma ou outra vez com alguma vénia.

Sempre admirei os seus cabo-verdianíssimos versos. Passei a admirá-lo ainda mais ao descobrir que, mesmo após a independência porque tanto lutou chegando a pagar com a própria saúde, manteve sempre os seus ideais, sem nunca se vergar. O seu corpo franzinho multiplicava-se por milhares quando o assunto era dignidade, ética e cabo-verdianidade.

Em tempo de recordar, deixo aqui um poema do poeta-profeta. É só ler e entender:

Cá vamos reconstruindo o país. Devagar, é certo, mas avançando ilha a ilha. Dor a dor.
(...)

O mar acabou o lamento de não ouvir falar da frota mercante. O vento é a possibilidade de dominarmos a energia eólica. As estradas a rasgar as montanhas puseram fim à música silenciosa destas.

A luta contra a seca é uma constante. Diques conservação do solo e da água. Aproveitamento de recursos hídricos. Ilha a ilha. Lágrima a lágrima.

Puros, de pureza do sal, deixam-nos indiferentes as madrugadas de sonhos. Sonhos, só de criar. Esquecemos os nomes de utopias e de pasárgadas. Avante.

Criadores, portadores de certezas, o bloqueio está longe, perdido o ultraje imenso. Não tentaremos comover os deuses, pela simples razão de sermos nós os deuses.

O povo, de pé, tem agora outro canto: estaleiros navais, centrais elétricas, estruturas metálicas. A solidão morreu.

Desespero, desesperança vão sendo palavras esquisitas. Como falar em desespero, depois de ver desfilar os nossos pioneiros? Como pensar desespero, depois de ouvir aquela garotinha de dois anos (nem isso teria), cantar, muito séria ‘nós somos os pioneiros’ ‘nós somos o futuro da revolução’? Ah, revolução, se não vingares, não será decerto por culpa desta pioneira de pioneiros!

Foi riscado, das nossas estradas a percorrer, o caminho da perdição do serviçal-escravo-contratado. Os capatazes de escravo perderam o emprego.
(...)

Nas ilhas ora calmas não acabarão jamais as metamorfoses. Já têm nome os meninos sem nome da pátria do meio do mar.

O nosso destino, estamos a cumpri-lo: dar a Cabo Verde outro mar, outro céu, outro homem. Devagar, vamos conhecendo o sabor do sal da terra.

Estes mares nunca foram muros, muito menos agora. Ontem, uniram-nos. Hoje, as vedetas rápidas vão encurtar as distâncias.

Com que satisfação morreram as profecias sangrentas e os processos! A noite longa não se repetirá jamais!

Chamamos uma vez a Cabo Verde "estrela salgada de dez braços / e em cada braço mil esperanças". Se pusermos, hoje, em cada esperança mil certezas, ficaremos com uma idéia clara do espírito com que se enfrentam as dificuldades nesta pátria do meio do mar.

Devagar, a reconstrução nacional avança. Ilha a ilha. Dor a dor. Amor a amor.

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