Com a devida vénia e créditos, publico a entrevista que se segue, feita pela jornalista brasileira Graça Magalhães-Ruether à Prémio Nobel de Literatura de 2009 Herta Müller e publicada no jornal Globo.
A escritora romena Herta Müller surpreendeu o mundo ao ganhar o Prêmio Nobel de Literatura em 2009. Mesmo na Alemanha, onde ela vive desde 1987, a decisão do comitê do Nobel causou surpresa, embora Herta tenha acumulado antes muitos prêmios de literatura no país. Prestes a completar 58 anos, a escritora, que usa linguagem poética para falar dos duros tempos da ditadura comunista na Romênia (1965-1989), tem em sua história familiar alguns dos maiores dramas do século XX.
O pai, um romeno de origem alemã, fez parte das SS, as piores tropas nazistas. A mãe, uma camponesa simples, foi deportada para um gulag antes do fim da guerra. Herta nasceu em plena era stalinista. Mas esse passado era tabu na casa da família Müller, em Nitzkydorf, na região do Banat, Oeste da Romênia.
Em entrevista exclusiva ao GLOBO, a primeira a um jornal brasileiro, no café da Casa de Literatura de Berlim, Herta conta como ficou chocada quando soube que seu grande amigo, o poeta Oskar Pastior, que inspirou o personagem Leo Auberg do livro "Tudo o que tenho levo comigo", lançado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras, era colaborador da polícia secreta romena, a mesma que a ameaçou de morte três anos depois da sua chegada à Alemanha. Em abril de 2012, a Companhia das Letras lança outro livro da autora, "O homem é um grande faisão".
Seu livro "Atemschaukel" foi lançado no Brasil como "Tudo o que tenho levo comigo". O que achou desse título?
HERTA MÜLLER: Eu fui consultada. O mesmo aconteceu com a edição americana: a tradutora me disse que não existe tradução para "Atemschaukel" (algo como balanço da respiração), porque essa palavra não existe em inglês. Aí eu sugeri a primeira frase do livro, "tudo o que tenho levo comigo".
O livro é baseado na história do poeta Oskar Pastior, romeno de origem alemã, como a senhora, que passou cinco anos em um gulag soviético. Pouco depois de a senhora receber o Prêmio Nobel de Literatura, foi descoberto que Pastior, falecido em 2006, foi colaborador da polícia secreta comunista romena Securitate...
Fiquei muito chocada. Há uma Fundação Oskar Pastior, da qual eu também faço parte, que está avaliando a documentação. Encontramos quatro documentos sobre pessoas que foram espionadas por ele. Os casos foram inteiramente inofensivos. Na minha opinião, ele não conseguiu mais se livrar da Securitate. Quando ele voltou do campo, na Ucrânia, escreveu sete poesias sobre o lugar, que foram consideradas pelo serviço secreto romeno criticas à União Soviética. Além disso, ele era homossexual. Só por causa dessa última característica, podia ser preso a qualquer momento. Ele foi forçado a colaborar com o serviço secreto para não ir para a cadeia. Depois da experiência de cinco anos no gulag, ele não aceitaria mais ser preso. Foi uma chantagem muito triste. Quatro relatos em dez anos é pouco em comparação com a produção média dos agentes. Alguns faziam dez relatos sobre dissidentes por dia. Foi nos anos 1960, na era mais brutal do stalinismo. As pessoas que assinaram um dia a disposição de colaborar nunca mais conseguiam se livrar da Securitate.
Quando a senhora fugiu da ditadura da Romênia, vindo para a Alemanha Ocidental, em 1987, tinha ao redor de si outros dois colaboradores da polícia secreta de Ceausescu (Nicolae Ceausescu, que comandou a Romênia de 1965 a 1989), também escritores de minoria alemã, que se faziam de dissidentes...
Essas pessoas - não quero citar os nomes, porque não são conhecidos no Brasil - colaboraram por motivos bem diferentes dos de Pastior. Não foi para sobreviver, mas para obter vantagens materiais.
Depois de chegar à Alemanha, também a senhora foi acusada de colaborar. Foi muito doloroso?
Foi horrível. Eu fui vítima das pessoas que colaboravam para o serviço secreto, que me acusaram de trabalhar para o regime de Ceausescu. Foi um ato de vingança, porque eu sempre me recusei a trabalhar para eles. Diante das acusações, eu podia apenas dizer que isso não era verdade. Mas ficava a vaga suspeita. Eles queriam que eu perdesse a minha credibilidade. Quase me destruíram. Muitas pessoas se distanciaram de mim depois das acusações.
Como foram os primeiros anos na Alemanha?
A princípio, eu me sentia apenas salva. Durante três anos, continuei recebendo ameaças de morte do serviço secreto. Não fui bem tratada pelos alemães. Eles não me queriam aqui. No abrigo de Nuremberg, a primeira estadia dos dissidentes que chegavam do Leste Europeu, fui muito mal tratada, por causa das acusações.
O diretor romeno Andrei Ujica fez um filme sobre a geração Ceausescu, que estaria ainda traumatizada. Por que ele continua tão presente na mente dos romenos? Outros ditadores comunistas, como o alemão oriental Erich Honecker, foram esquecidos.
A Romênia teve uma das ditaduras mais sombrias do Leste Europeu, atingindo uma extrema pobreza talvez comparável apenas à da Albânia. Não havia energia elétrica. No inverno, a temperatura caía para 30 graus negativos e não havia aquecimento. Não havia medicamentos. Vivíamos em uma era pré-industrial. As pessoas estavam amedrontadas e brutalizadas. O sistema de espionagem foi um dos mais abrangentes do bloco comunista. E Nicolae Ceausescu formava ao redor de si um culto pessoal horrível. Ele e seu clã criaram uma forma de ditadura que não havia na Polônia, na Hungria ou na Alemanha Oriental. Ceausescu foi um monstro. Um analfabeto e uma pessoa muito perigosa. Mas, no final, não sabemos direito o que aconteceu. Parece que o segundo ou o terceiro escalão o derrubaram. Muitos dos funcionários continuaram no poder.
Seu pai foi nazista, lutou ao lado dos alemães na Segunda Guerra Mundial; depois, sua mãe foi deportada para um gulag, descrito no seu romance "Tudo o que tenho...". Quando começou a perceber que tinha uma biografia tão incomum?
Eu não tive uma biografia incomum. Talvez para ouvidos brasileiros a minha história não pareça muito normal. Meu pai fazia parte das SS, mas, na época, a Romênia inteira era nazista, aliada de Hitler. Havia lá também as leis raciais de perseguição das minorias, como judeus e ciganos. Havia guetos e campos de concentração. Depois de 1945, apenas a minoria alemã foi considerada pelos russos responsável pelos crimes do nazismo. Já em janeiro de 1945 começou a deportação de civis para o gulag, antes do final da guerra, em maio. Os homens ainda não tinham voltado quando começou a deportação de 80 mil mulheres, idosos e pessoas que eram jovens demais para a guerra. Isso não afetou apenas a minha família. Toda a minoria alemã passou pelo mesmo. Nasci em uma ditadura stalinista, em 1953. Quando estava no ginásio, comecei a pesquisar sobre o envolvimento da Romênia no regime Nacional-Socialista. Depois, comecei a ter problemas por causa da literatura e de ser dissidente. Muitos dos meus amigos já tinham sido presos, expulsos da universidade porque eram vistos como inimigos do Estado.
Seus pais falavam alguma coisa sobre a época do nazismo e da deportação?
Não. Meus pais eram camponeses, e camponeses não gostam de falar. A minha mãe nunca contou nada sobre a deportação, era proibido. Quem sobreviveu cinco anos no campo estava tão vulnerável que seguia todas as orientações do Estado, estava abastecido de medo para toda a vida. Todas as mulheres da geração da minha mãe foram deportadas.
Os seus livros costumam abordar o passado. É algo que não consegue esquecer?
Pelo menos a metade dos escritores não busca os seus temas. O peso do que se viveu é tão forte que não há maneira de fugir. A literatura se ocupa dos temas que mais causaram feridas. Jorge Semprun (escritor espanhol), que faleceu há pouco, escreveu a vida inteira sobre campos de concentração, sobre a resistência e a era nazista.
Quer dizer que escrever, para a senhora, ajuda a superar o passado?
Não supero nada. Superar é uma palavra muito positiva. Ao escrever, conseguimos compreender melhor o passado. Mas, quando termino, estou de novo como comecei. Todo mundo vive com as suas recordações. Não podemos lavar as nossas cabeças por dentro e dizer: "Agora é o momento zero."
Quando o livro foi lançado na Alemanha, em 2009, a sua mãe resolveu finalmente falar sobre a época da deportação?
A minha mãe, que também vive em Berlim, é uma mulher muito simples. Ela nunca lê livros. "Tudo o que tenho levo comigo" foi o primeiro livro meu que ela leu, porque ela sabia que a obra abordava o gulag e que eu havia trabalhado com Oskar Pastior durante anos sobre esse tema. Depois de ler o livro, ela disse: "Foi exatamente assim". Mais, ela não disse.
O livro é formado por três partes que não são alinhadas cronologicamente. Isso foi intencional para mostrar melhor o clima da história?
Acho que nenhum dos meus livros é cronológico. O que é cronológico? A vida não acontece apenas em uma linha ou direção de percepção, como nas recordações. A minha vida funciona assim. Não é um truque literário.
Como é o seu processo de trabalho, no dia a dia?
Escrevo com um computador. Já experimentei muitas coisas, trabalhei em uma fábrica e já escrevia. Eu me sento ao computador e trabalho. Procuro me esforçar para fazer o melhor possível.
Graça Magalhães-Ruether (graca.magalhaes@oglobo.com.br)
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