domingo, fevereiro 21, 2010

A minha língua

Novembro de 1999. Estava eu no aeroporto da Beira, Moçambique, acompanhado de uma linguista brasileira numa missão de consultoria quando, de repente, um cidadão português intrometeu-se na nossa conversa cujo assunto não me lembro. Minutos depois, num laivo colonial, aliás muito habitual ainda por aqueles e estes lados, o cidadão português fez um comentário mais ou menos assim: "vocês, cabo-verdianos e brasileiros, não têm língua, felizmente que têm o português".

Eu não estava com pachorra para aquela palermice e como não sou linguista, respondi na hora: "bringuem vocês dois - português e brasileiro - porque eu tenho língua, é o crioulo". A colega brasileira olhou-me de soslaio, como que dizendo "em que fria me meteste?", enquando saía para caminhar um pouco pelo aeroporto.

Lembrei-me deste episódio hoje, Dia Internacional da Língua Materna. Na TCV, modero um debate, depois do Jornal da Noite, sobre o ensino do bilinguismo em Cabo Verde. Infelizmente, a época não é para muitos debates ou conversas porque apenas se ouvem ruídos, e ninguém escuta o outro, nem se escuta.
Eu, que não tenho complexos em falar português e crioulo, ou mais correctamente cabo-verdiano, e que me sinto tão bem com as duas línguas, lamento apenas o tempo e as gerações que perdemos por, tão somente, não sabermos discutir coisas que apenas a nós interessam. É triste ver como gastamos milhões em seminários impostos pela ONU, UE, FMI, BM, UA e todo o tipo de organização sobre temas que muito pouco nos dizem respeito apenas a nós. No entanto, não conseguimos tratar, com a dignidade que merece, aquele que é talvez o elemento idiossincrássico que mais nos diferencia dos outros povos: a nossa língua.

Enquanto a maior potência dos últimos 80 anos gasta bilhões de dólares para ensinar outras línguas, em Cabo Verde tratamos o crioulo como lixo. Apenas para conversa de rua.
Felizmente os nossos compositores sempre souberam o papel da nossa língua materna, caso contrário...

2 comentários:

Amílcar Tavares disse...

Concordo em género, número e grau com o remate do seu post, caro Álvaro.

O que me incomoda não é essa férrea oposição pois ela é bem-vinda. É o seu bota-abaixismo. Não têm uma proposta, em alternativa àquela existente.

Há muita gente sabedora e com altíssimas capacidades nesse grupo e lamento muito a sua inércia. Deviam apresentar uma alternativa que acicatasse um debate enriquecedor e construtivo.

Álvaro Ludgero Andrade disse...

Prezado Amilcar,obrigado pela sua sempre acertada e sempre pertinente opinião. Essa inércia e o bota-abaixismo me tiram do sério, como diz o brazuca. Mantenhas.