Um ano após a cirurgia de remoção do câncer na bexiga, a 21 de Novembro de 2011, publico hoje uma conferência-testemunho pessoal que apresentei no jantar da Associação de Homens de Negócios do Evangelho Pleno, no passado 5 de Outubro, no Mindelo, São Vicente. Este extracto fará parte de um livro que tenho na forja.
A
experiência de viver numa das cidades mais in
do mundo, Miami, durante mais de oito anos e trabalhar para uma organização internacional
de rádios, com sede em Birmingham, Inglaterra, e delegações no Chile, África do
Sul, Zâmbia, Austrália, Ucrânia e Índia, estava sendo muito boa. A isto,
acrescentei uma esposa virtuosa, um tesouro autêntico, e duas filhas, gémeas,
para animar a caminhada para a terceira idade.
Fazia
o que gostava, jornalismo, e ainda me pagavam, dirigindo dois serviços de
notícias, em Português e em Espanhol. Tinha a oportunidade de viajar pelo mundo
para conferências e cobrir eventos como os Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004,
o Mundial de Futebol de Alemanha, em 2006, ou os Jogos Panamericanos do Rio de
Janeiro, em 2007.
Um
dia, fazendo o meu footing vespertino, senti que Deus me dissera que era hora
de regressar a Cabo Verde para fazer o que para o qual ele me tinha preparado
nesses oito anos em Miami: ajudar as pessoas da minha terra a viverem o
verdadeiro Evangelho, sem religiosidades, participar num projecto de
comunicação social com valores cristãos e fazer alguma obra social. Quanto à minha
esposa Valéria não foi necessária nenhuma limpeza cerebral: Deus preparara o
seu coração quando visitou Cabo Verde em 2007.
O
regresso foi agendado para 2009 e tudo estava sendo preparado para esse ano,
mas em Setembro, de 2008 recebi um convite para integrar o Conselho de
Administração da Radiotelevisão Caboverdiana e, assim, trabalhar num projecto
apelativo: modernizar a empresa da qual fui expulso pelas “cabo-verduras” da
década de 1990.
Depois
de um intenso programa de digitalização da TCV e da RCV e de uma cobertura
exemplar e única das eleições legislativas de 2011, quando tudo apontava para
uma fase de um trabalho profundo ao nível da qualidade do produto, dou de
frente com um problema que há algum tempo suspeitava, mas que adiava
diariamente.
Apertado
entre a minha esposa e um urologista amigo e primo, em dois dias realizei três
exames que confirmaram a necessidade de um tratamento no exterior por falta de meios
em Cabo Verde. O aviso foi forte: “tens de sair e já”.
No
regresso à casa o ambiente estava pesado, mas convidado pela Valéria fui ao
farol da Praia. Aí o desafio foi: “vamos chorar tudo aqui, clamar a Deus, entregar a caminhada de agora em diante
totalmente nas suas mãos e olhar para essa Praia à qual regressaremos para
continuar o trabalho”. A realidade mudara abrupta e radicalmente e, uma semana
depois, estava a caminho dos Estados Unidos.
A
viagem foi talvez a mais tranquila que fiz em toda a minha vida, tendo, nessas
sete horas, entendido o sentido da expressão bíblica que diz “a paz de Deus supera todo o entendimento”.
No dia seguinte, fui ao hospital que confirmou a existência do tumor na bexiga
e me recomendou um urologista. Nesse mesmo dia, Deus abriu uma das mais
importantes portas em todo esse processo: a garantia do seguro médico
totalmente gratuito para uma doença de tratamento longo e oneroso.
A fatalidade humana
Uma
semana depois o urologista confirmou o diagnóstico e marcou para 1 de Junho a
remoção do tumor. Depois da operação inesperadamente longa, 90 minutos, o
médico confirmou à Valéria que era câncer e que tinha mandado uma amostra ao
laboratório para determinar até onde a doença se tinha alastrado.
O
resultado chegou: câncer de categoria 2, que infiltrou a membrana da bexiga que teria de ser removida. O tratamento a
seguir seria quimioterapia durante alguns meses e uma longa e complicada
operação para remoção da bexiga e criação de outra a partir de um pedaço do
intestino delgado. Pelo meio, o perigo de, a qualquer momento, haver metástase.
Complicado
para mim compreender o processo, mas a minha mente voltou a enfocar-se na minha
confiança em Deus e numa imagem que me tinha aparecido meses antes ainda em
Cabo Verde, enquanto dormia, mas que só nesse momento entendi: cancer survivor.
Depois
de sair do consultório, fui a um café com Valéria e minha cunhada. Entrei na
casa-de-banho e foi o único momento em que chorei, e muito. Nessa altura pedi a
Deus que me deixasse ver crescer as minhas filhas e renovei o meu compromisso
de fazer o que Ele tinha proposto para a minha vida.
Lembrei-me
de algo que aprendi com a Valéria, a partir da experiência dela que, aos 16 anos, e depois de um acidente recebeu a sentença dos médicos: “ficarás tetraplégica”. Foi então que,
socorrendo-se da sua fé, fez um pacto com Deus: “tira-me desta cama e eu anunciarei o teu Evangelho aonde me enviares”.
Ela está aqui hoje, ao meu lado, em Cabo Verde. Fiz, então, o meu pacto com
Deus.
A
partir de então, e enquanto o cirurgião, a oncologista e o urologista definiam
o plano de tratamento, decidi usar este processo para a glorificação de Deus,
pedindo a oração dos cristãos que me
conhecem em Cabo Verde e em várias partes do mundo, ao mesmo tempo que
trabalhava mesmo à distância para a RTC e para duas agências de notícias
internacionais, assim como mantinha uma intensa participação nas actividades da
Igreja do Nazareno em New Bedford.
Com
a minha família por perto - Valéria, as
meninas e os dois rapazes que moram na Flórida visitando quando podiam - e o
grande apoio da família do meu irmão, que me acolheu, comecei uma longa jornada
em que o organismo tinha de responder a medicamentos muito fortes e a mente não
podia falhar. O espírito jamais podia enfraquecer. Conheci então, de forma
particular e especial, a graça de Deus que me permitia receber a visita de
amigos e, no final, ouvir: “viemos aqui
para te dar uma força e és tu que nos encorajas”.
Durante
este percurso, aproximei-me mais e conheci a Deus muito melhor. Aprendi que ele
vê o processo concluído, enquanto nós vamos vendo e protagonizando cenas
diárias, com a visão bloqueada pelo pôr-do-sol.
O amanhecer de cada dia podia ser difícil ou fácil, dependendo de onde
colocava a minha mente: na doença e na sua fatalidade humana ou em Deus e nas
suas promessas.
Nesse
processo, uma conclusão óbvia: as forças humanas não bastam, há que procurar a
ajuda divina e ela vem apenas com a oração. O exemplo partiu da minha mãe que
em vez de choramingar, decidiu ajoelhar. Aos 84 anos!
O desafio ao corpo e à alma
O
tratamento com quimioterapia estava previsto para durar seis meses e a operação para
Janeiro de 2012, data que, na minha mente, nunca aceitei. Disse a Deus
claramente: quero ser operado o mais tardar em Novembro para poder regressar rapidamente
a Cabo Verde e retomar a minha vida.
Na
primeira semana de tratamento tive alguns enjoos e tonturas, não muito fortes
devido aos excelentes medicamentos usados nos EUA e à excelência dos
profissionais. Ao contrário da indicação médica, o cabelo não caiu de todo e o
corpo resistia bem aos medicamentos, o que me dava a sensação de que o
calvário, afinal, podia não ser tão difícil. Dois meses após o início da
quimioterapia, o primeiro exame indicava que o tumor se tinha reduzido, o que
foi uma boa notícia.
Deus
trabalhava de forma diferente daquela que eu pensava e pedia. Ele conhecia o
fim e eu ainda estava entretido com os capítulos iniciais desta novela real. A
dicotomia radicava em descansar e esperar em Deus, ao mesmo tempo que aguardava
pelos resultados esperados. Dois meses depois, com o segundo exame, veio o
alerta, ou melhor, a novela entrava no caminho escrito por Deus: o tumor tinha
regressado e eu comecei a ver sangue na urina, como antes da cirurgia para a
remoção do tumor.
Antes
do segundo exame, uma lição extraordinária: pedi a Deus que o câncer
desaparecesse e esperava um resultado nesse sentido, mas tal não aconteceu. No
entanto, Ele estava trabalhando de outra forma. A oncologista, que definiu o
tratamento de seis meses e a operação para Janeiro do ano seguinte, teve de
ausentar-se do país e um outro médico analisou o exame e concluiu: “é hora de
avançarmos para a operação porque o tumor pode voltar a crescer e sair da
bexiga, onde ainda se encontra localizado”. Quando a oncologista, por sinal a
Directora do Centro de Tratamento, regressou, encontrou o plano da cirurgia
pronto. Se havia algum obstáculo, Deus o removera.
O
resultado negativo do segundo exame e que contraria toda a lógica inicial,
deveu-se a um factor que vim conhecer apenas depois da operação final: o
tratamento de quimioterapia não estava a surtir efeito, por isso a não queda de
cabelo na totalidade, por exemplo. A biopsia final confirmou que desenvolvi
células raras, que resistiram ao tratamento, o que acontece em apenas 3 a 4% dos casos em
todo mundo.
Nessa
altura, enquanto alguns familiares começaram a se preocupar com a notícia,
lembrei-me do meu pedido e aguardei a operação que viria a acontecer a 21 de
Novembro de 2011. No dia marcado, o cirurgião disse-me a mim, à Valéria e ao
meu irmão que estavam comigo que a operação seria longa e complexa e que, caso
o câncer não estivesse circunscrito apenas à bexiga, ele não poderia fazer a
operação.
Como
se pode imaginar, não foi uma notícia muito alegre, mas tinha acordado com uma
certeza na minha mente: quando despertasse veria a minha família feliz ou
entraria num lugar muito iluminado que, na minha mente finita e humanamente
formada, seria o céu. Por isso, estava tranquilo sabendo também que havia um
povo orando por mim, particularmente na Igreja da Praia que abriu as portas do
templo para orações e jejum até o fim da cirurgia.
Oito
horas e meia foi o tempo que durou a cirurgia, durante a qual foi-me removida a
bexiga completamente e criada outra com 50 centímetros do intestino delgado,
além de várias outras conexões internas. “O
tempo não passava”, disse-me mais tarde a Valéria, que estava em permanente
conexão com pessoas de várias partes do mundo, através do Facebook, as quais
oravam e queriam ter notícias. Vim a saber depois que alguns colegas que nunca tinham
orado e professam a fé católica estiveram na igreja pedindo a Deus por mim.
Quando
acordei da operação, além da família que estava feliz e um amigo de infância,
vi o cirurgião fazer-me o sinal de que tudo tinha corrido na perfeição. O
relato da operação, transcrito e que faz parte do meu arquivo pessoal, diz que
a operação decorreu “sem qualquer
complicação”. No entanto, faltava a prova final: o resultado da biopsia
para saber se tinha havido metástase no corpo ou se tudo tinha sido removido.
Da esperança à certeza
Entrementes,
a recuperação começava no hospital, com três buracos na barriga quatro sondas,
muita incomodidade e previsão de seis dias à base de soro, sem qualquer tipo de
alimentação sólida. No dia a seguir à
cirurgia consegui caminhar 20 minutos e,
nos demais, enfermeiros e médicos se surpreendiam com a minha recuperação.
Regressei à casa depois de nove dias.
Os
dias seguintes constituíram uma fase muito interessante, de permanente luta
mental e espiritual, ao mesmo tempo que assistia calado à ansiedade cada vez
crescente da Valéria, da minha mãe que também foi aos EUA para me apoiar, do meu
irmão e cunhada, assim como da restante família que estava em Cabo Verde. A
possibilidade de metástase existia e só o resultado da biopsia poderia
confirmar ou não. Em caso positivo,
teria de regressar nos Estados Unidos e refazer a vida lá, numa situação bem
diferente, tanto do ponto de vista laboral, como do seguro médico.
A
espera do resultado parecia uma eternidade. A Valéria e a minha cunhada
decidiram ligar ao médico antes do dia da consulta para saber o resultado que,
no entanto, já devia ter saído. Nesse dia mantive-me calado, na minha luta
interna aprendia a cada segundo que a hora era de descansar porque o fim dessa novela real estava escrito. O cirurgião
ligou no fim do dia, enquanto a ansiedade aumentava e os olhares se cruzavam
entre os quartos, a cozinha e a sala de estar.
A
resposta foi a que Deus tinha escrito desde o início desta história: o câncer
foi totalmente removido e não houve qualquer invasão do corpo, ou seja, não
houve metástase. A festa foi de arromba, mas principalmente de muita gratidão a
Deus e a todos os amigos que se juntaram a mim nessa luta. Enquanto isso, tive
de consolar um amigo que perdeu a esposa, de 50 anos, devido a um câncer
fulminante num período de seis meses.
Em
casa mantinha um intenso processo de recuperação, física e mental, de controlo
da nova bexiga e da urina. A oncologista espantou-se com a minha recuperação e
as enfermeiras no Centro de Tratamento de Câncer de Saint Luke ficaram
boquiabertas quando me viram.
Para
quando o regresso a Cabo Verde? O prognóstico do cirurgião apontava para um
período de seis meses após a operação, mas, um mês depois, ele o reduziu para
três meses. Deus continuava a trabalhar e no dia em que se completaram dois
meses após a cirurgia, o médico me deu alta. Fez alguns exames definitivos e
estabeleceu, com a oncologista, um controlo a cada seis meses, durante os
próximos dois anos e anualmente durante mais três anos. O primeiro foi feito em
Junho e com bons resultados.
Os alicerces
Num
processo como este, ver a morte é a parte mais fácil e imediata, mas ver a vida
só pode acontecer quando esperamos que Deus preservará a nossa vida porque ele
tem um propósito para e com ela. A vida sem propósitos não interessa a ninguém,
nem a Deus, por isso entendi que devia continuar a tocar a minha vida para frente.
Escrevia
diariamente para uma agência de notícias em Portugal, participei nas noites
eleitorais dos dois turnos da eleição presidencial por telefone, trabalhei com
um amigo vários projectos de investimento de americanos em Cabo Verde, fui a
Washington para uma conferencia sobre direitos de autor, escrevi várias lições
para classes da Escola Dominical, estive activo na igreja local, participei em
dois wokshops da Cape Verdean American Media Association, passeava com as
minhas filhas e Valéria, enfim, mantinha uma atitude que não podia, em nenhum
momento, indicar qualquer tipo de dúvida em relação ao plano de Deus.
As
pequenas coisas que a vida nos oferece têm grande valor e devem ser aceites
como dádivas divinas, as quais têm de ser preservadas, como a visita de um
amigo, o sorriso de uma criança, uma bandeja de pastéis de uma senhora de 80
anos ou uma panela de canja oferecida com amor.
Mas
qual é a base de tudo isto? Qualquer homem de negócios ou profissional sabe que
a formação, a experiência e a capacidade de trabalho dos seus empregados, uma
gestão cuidadosa e proactiva e investimentos seguros garantem retornos à
empresa.
E na
nossa vida? Qual é o segredo dela ser bem sucedida? Será que tão somente nos
bons e recomendáveis alicerces que nós mesmos fundamos com uma sólida formação,
carreira bem construída, carácter irrepreensível e grande capacidade de
trabalho?
Com
49 anos de idade e uma vida que considero muito intensa e diversificada, tanto
como estudante, desportista, jovem activo na igreja e na sociedade, estudante
no estrangeiro, profissional duma classe com algum reconhecimento, uma carreira
recheada de desafios e sucessos, no país e no estrangeiro, sem nenhum problema
de enquadramento nos diversos espaços em que circulo, concluo que a vida só
pode ser vivida de forma integral e para isso, apenas Deus pode capacitar-nos
para enfrentarmos o lado da nossa existência cujos aspectos não construímos
porque nos ultrapassam.
Todo
o ser humano reconhece existir algo superior ao ser finito e limitado, uns
falam em energias, outros em karmas, outros em divindades, outros em Yin e
Iang, outros em alá, etc. Eu encontrei a Deus que me deu a vida para viver de
forma intensa, com um propósito, como profissional que preza muito o saber
fazer e fazer bem, porque é uma exigência do próprio Deus de excelência.
Deus
está em todo o lugar e o encontramos tão facilmente como o vento que bate na
nossa cara, se tão-somente o procurarmos na simplicidade da sua existência, sem
tabus nem dogmas, apenas submetendo o nosso viver ao seu padrão de qualidade
superior. Para isso, Ele mesmo nos ajuda a encontrá-lo e a conhecê-lo, e, ao
mesmo tempo, como um amigo que dá um abraço forte e apertado, nos oferece uma
vida em abundância e com propósito.
Há
dois meios para o fazer: através da oração, quando falamos com Deus sem regras,
nem rezas, nem frases memorizadas, mas
apenas dizemos o que nos vai na alma, e lendo a Bíblia, como o manual de uma
vida de excelência.
Uma
vida com propósito, é uma vida de compromissos e o melhor de todos é a aliança
que podemos e devemos fazer com Deus. É um investimento seguro e eterno.
Testemunho
pessoal apresentado no jantar da Associação de Homens de Negócios do Evangelho
Pleno (Adhonep), a 5 de Outubro, no Mindelo.
3 comentários:
Olá Álvaro como a neve.
Que o Senhor Jesus te abençoe, e te renove a cada dia.
Estarei a orar por ti.
Um forte abraço.
Olá, Álvaro.
Um "olá" amigo é o que me permito enviar-lhe. Fiquei bem com o seu depoimento. Não porque atravesse um momento igual mas porque já me aconteceu algo de semelhante. O contraste é que você estava "acompanhado",eu estava "só", não obstante o calor humano da família que muito amo e muito me ajudou, já lá vão quatro anos.
Gostei do seu depoimento, gosto de si, gosto dos seus filhinhos sem os conhecer, da sua companheira de todos os dias, mãe dos seus filhos; gosto da fé com que você se veste e do amor com que se entrega a esta vida efémera que "vale o que vale" mas que tem, também, momentos lindos. Obrigado Álvaro pelo seu depoimento, fez-me bem, aos 71 anos.
Um enorme abraço
Armando Sousa
armandopsousa@hotmail.com
❤️🙏❤️
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