domingo, maio 15, 2016

Narciso, não, agradecido e com referências


Hoje, 15 de Maio, ao acordar, pouco depois das seis da manhã porque não sou de muitas horas de sono, ainda na cama agradeci a Deus por mais um dia. Que não é apenas mais um dia.

Há exactamente dois anos, a 15 de Maio de 2014, submeti-me a uma intervenção cirúrgica de sete horas e meia para a remoção de um câncer (continuo a rejeitar escrever cancro, não gosto) no pâncreas. É mesmo, ali mesmo!!! Todos se espantam quando narro essa experiência e olham para mim como se estivessem a ver um fantasma ou alguém com dias contados.

Também quando cheguei ao hospital, apesar do alto profissionalismo e sentido de humanismo do pessoal no Georgetown University Hospital, notei algo estranho em algumas faces quando sabiam que estava lá com um câncer no pâncreas. Como me disse um especialista meses depois, foi o câncer que o Steve Jobs teve, daí que talvez pensassem que eu seria o próximo Steve.

Na verdade, dizem, é um dos cânceres mais mortais que existem, no entanto, como me explicou um dos quatro oncologistas que me atenderam em todo esse processo, o "milagre" foi ter descoberto o bicho cedo, quando tinha menos de dois centímetros, ao ponto de não ter sido possível apanhá-lo para fazer a biópsia antes de ir à faca. O cirurgião, por isso, disse que não havia retorno: fazer a cirurgia e depois confirmar a sua malignidade.

Antes da viagem, Valéria perguntou-me o que devia ser feito com o meu corpo se passasse desta para a melhor durante a cirurgia. Não podia ser mais directo: se pudesse, gostaria que as minhas cinzas fossem lançadas no mar de Cabo Verde, tão apenas por uma questão de "criolidade". No entanto, como não pretendo deixar mais encargos à família, que fosse enterrado aqui mesmo em Washington porque a minha alma já teria sido promovido à Glória. O resto era detalhe.

"Muito bom ter trabalhado no teu corpo…"

Horas depois de ter acordado da cirurgia, a Valéria disse-me que o cirurgião informou que tudo tinha corrido muito bem, mas… encontrou algo suspeito no fígado. Embora fosse de opinião que não era nada grave, devia fazer uns exames.. E mesmo com três bolsas penduradas no corpo, lá fui corredor abaixo para mais uma sessão de "fotos", com o técnico a encher-me de perguntas.

No dia seguinte, na primeira visita, o cirurgião deu-me as boas-vindas com isto: "foi muito bom ter trabalhado no teu corpo, reagiu muito bem". Com que então, meu corpo é bom,  homem????!!!!  Bom, lá me explicou que tinha sido mesmo um câncer que se desenvolveu no pâncreas, mas que acreditava que fora completamente extirpado. Os meus hábitos alimentares sofreriam algumas mudanças, para melhor, e que eu ia perder peso, mas tudo regressaria à normalidade. Antes, tinha de passar uns oito dias no hospital, dos quais, seis sem comer.

Dias depois, no seu lindo gabinete, rodeado de fotos da mulher, negra, e de dois filhos mulatos, já que ele é branco, confirmou que todas as células cancerígenas tinham sido retiradas e que, como ele desconfiava, a saliência no fígado era normal. Devolveu-me ao oncologista principal.

Dois anos depois, com menos 15 quilos, sinto-me muito bem, como de tudo, mas em quantidades moderadas, embora evite fritos, comida gordurosa, embutidos e derivados de porco (a única dor). Os exames feitos há pouco mais de um mês comprovam não haver qualquer sinal de reincidência, e que, sem bexiga, sem duas mamas, sem duodeno,  sem vesícula, sem parte da bexiga, pode-se viver e bem.

Referências

Não sou Narciso, não, apenas sinto que, como tenho feito desde que iniciei esta longa jornada em Maio de 2011, devo marcar essas datas como forma de agradecer a Deus pelas novas vidas que me tem dado, aos profissionais pela entrega e excelência - e de verdade tenho sido atendido por grandes profissionais - e destacar que na vida há referências que importa lembrar.

Quando chegam o cansaço, o desânimo, a tristeza, frustração, ofensas, incompreensões, olho para cada uma das minhas cicatrizes e lembro que sempre há uma nova oportunidade. São referências que me marcam e me empurram a levantar cada dia às 5.15 da manhã, com a certeza de que a misericórdia de Deus se renova cada manhã e que com Ele é possível vencer.

São referências que me estimulam a pensar que sem o apoio de profissionais, de gente que têm dedicado a sua vida a estudar como vencer as doenças, da família e dos amigos seria praticamente impossível superar obstáculos tão grandes como um câncer, ou melhor, quatro. Ninguém é forte o suficiente sozinho, mas somos muito mais fortes quando podemos estar cercados de pessoas que nos ajudam, a quem podemos recorrer, que oram por nós.

São referências que me levam a pensar e a acreditar que é possível vencer com fé, atitude positiva e muito trabalho. Sim, também para manter a saúde, há que trabalhar, na prevenção, nos cuidados com a mente e o corpo, na alimentação, no estrito cumprimento das recomendações médicas.

Sem referências não há vitórias porque são elas que marcam o caminho e são através delas que vamos vencendo cada etapa.

15 de Maio de 2014 é mais uma referência. A continuar...

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