sexta-feira, junho 21, 2013

Da laicidade à legalidade, um olhar ao Acordo entre Cabo Verde e a Santa Sé




A assinatura do Acordo entre Cabo Verde e a Santa Sé motivou poucas reacções públicas e muitos silêncios. O Superintendente da Igreja do Nazareno reagiu fortemente e o Primeiro Ministro foi lesto em recebê-lo, reiterando a laicidade da República. Da oposição apenas um “ruidoso” silêncio que indicia ter sido passada para trás, ou seja, gostaria de ter rubricado o documento. Dos opinion makers,  sempre lestos em opinar sobre tudo, não li, ouvi ou vi nada ainda, e nas redes sociais os comentários têm sido circunstanciais. Do Presidente da República, a última imagem foi dele beijando a mão do Papa.

Como cristão e cidadão tomei algumas notas que comento:

  1. O Acordo é um documento que define o relacionamento entre dois Estados, Cabo Verde e a Santa Sé, como expressa o ponto 1. do artigo 2, e por isso foi assinado pelos chefes das respectivas diplomacias. Sendo assim, é normal que o Estado de Cabo Verde tenha um acordo com o Estado da Santa Sé.
Ao tomar conhecimento há mais de um ano dessa iniciativa considerei positiva a assinatura do Acordo por parte do Governo de Cabo Verde que, desta forma, reconheceria os valores cristãos como formadores da Nação cabo-verdiana e definidores da nossa consciência social como povo. Com tanta influência contrária a tais valores ao redor de Cabo Verde e sendo o país aberto a todo o tipo de aculturação, entendi que o Acordo podia e pode funcionar como um separador de águas.

  1. No entanto, nem do ponto de vista político e muito menos constitucional, pensei que o Acordo poderia criar cidadãos de primeira e de segunda devido à sua fé, garantindo aos católicos determinados privilégios na sua prática religiosa. Com este Acordo, há duas categorias de fiéis.

  1. O artigo 12 abre caminho à capelania, ou seja ao aconselhamento e acompanhamento espiritual de cidadãos em determinadas situações, nomeadamente doentes, presos, militares e outros que estejam impedidos de cumprir em condições normais a sua actividade religiosa. Prática comum nos países ocidentais e que reputo de grande importância, desde que a mesma seja acessível a todos os cidadãos, ou seja que não só os católicos possam recorrer à capelania ou que os não católicos sejam “obrigados” a recebê-la, à semelhança do que acontecia séculos atrás.

O Estado deve criar condições para que líderes religiosos registados e reconhecidos pelas suas organizações prestem assistência aos seus fiéis, sem que estes tenham de a suplicar. O trânsito livre, embora ordeiro, nos hospitais, prisões e quartéis terá de ser devidamente legislado para que nenhum líder espiritual não católico fique dependente da “boa vontade” dos dirigentes de turno.

  1. O artigo 16 constitui um autêntico “soco” na laicidade do Estado cabo-verdiano e um desrespeito pelas demais confissões religiosas. Ao abrir caminho à introdução da disciplina de “Religião e Moral Católicas”, no ensino público, o Governo tão-somente considera essa moral melhor que todas as outras.

Apesar de ser cristão praticante e defensor da expansão dos valores bíblicos, não defendo o ensino de uma religião na escola pública por respeito a um dos principais atributos que Deus concedeu ao homem: o seu livre arbítrio. Defendo sim que as confissões religiosas tenham as suas escolas e nelas ministrem a sua fé. No ensino público, no máximo, poderão  oferecer capelania, actividades e espaços de apoio a quem quiser, mas não no curriculum escolar. O proseletismo nunca contribuiu para o avanço do Evangelho, que deve ser uma opção consciente do ser humano.

Por outro lado, o referido artigo é claramente inconstitucional num Estado laico e por ende deve merecer a devida atenção dos defensores do Estado de Direito e Democrático, caso contrário podemos entrar num caminho pernicioso, tanto para o Estado como para as confissões religiosas e para os cidadãos.

No Acordo assinado entre o Brasil e a Santa Sé está garantida a disciplina, em regime facultativo, à Igreja Católica e a outras confissões religiosas.

Lembro-me ainda, no tempo “da outra senhora” (entre 1971 e 1974), da luta que o meu pai tinha de enfrentar para conseguir a minha dispensa das aulas de Religião e Moral, e como eu ficava marcado pelos colegas, professores e comunidade.

  1. Como se pode inferir do texto acima, não sou contra o Acordo, mas sim contra os articulados referidos pelos motivos apresentados. É de bom-tom reconhecer e proteger o trabalho da Igreja Católica, apesar de não ser muito recomendável o branqueamento da história, como se tem ouvido em alguns discursos.
Tenho um enorme respeito pelas mulheres e homens católicos que exercitam a sua fé com integridade. Em particular, admiro as lideranças dos dois bispados actuais, que trouxeram um novo frescor e uma nova visão à Igreja, relegando para o passado a partidarização da religião.

Mas também respeito muito as outras confissões religiosas e, por isso, espero que o Estado respeite a fé de todos e não apenas a da maioria, cultural e demograficamente falando.

  1. Qualquer novato  na análise política sabe reconhecer o alcance eleitoral de uma medida que beneficia uma determinada classe ou a maioria. Esta é uma delas, apesar da sua razoabilidade histórica, teórica e diplomática. O Primeiro Ministro sabe disso, assim como o partido que o sustenta. A oposição e o Presidente da República também.
Acredito que ainda se vai a tempo de corrigir o que está errado. A Assembleia Nacional terá de ratificar o Acordo e espero que os deputados, de um e de outro partido, não se escusem na disciplina partidária ou no eleitoralismo e garantam a legalidade. O Presidente da República, a quem cabe promulgar o documento, tem a responsabilidade de velar pelo cumprimento da Constituição, pela igualdade de oportunidades e pela paz social.

Ou será que 2016 ou 2021 estão assim tão próximos?

PS: Este texto foi publicado na edição de hoje do jornal A Semana. No entanto, depois de mandar o mesmo para a publicação, soube que a legislação cabo-verdiana já prevê o casamento religioso, anteriormente revogado. Por isso retirei o número 3 publicado no texto original. Minhas desculpas.

2 comentários:

John Matos disse...

Temos de escrutinar os discursos dos politicos, religiosos, intelectuais etc., mas para tal temos que nos preparar intelectualmente todos os dias. Ora bem, o colega não estudou bem a filosofia, a historia das religiões, as ciências politicas e o direito.

Houve aqui alguém que chama a atenção do colega para o direito comparado internacional e o leitor tem razão. Sem dizer que o Alvaro tem de saber que o direito não é uma ciência exacta; ha escolas e ha politicas governamentais que têm discursos diferentes e todos terão razão pontualmente consoante os perfis e o ar dos tempos! Não, a medida não é de modo algum, inconstitucional. Mais uma vez, direito constitucional comparado! Enfim, o Alvaro vê a religião apenas pelo ângulo religioso;ora bem, a religião é tambem cultura e historia. So o estudo profundo e permanente nos permite criticar com propriedade. Os filôsofos de direito mundialmente reconhecidos Habermas e R Dworkin merecem a atenção do Alvaro.Numa coisa sigo o colega: o beijo do Presidente. Mas não pelas mesmas razões. A mim faz-me rir ver um antigo trotskista, um intelectual da extrema esquerda ir ao Vaticano beijar as mãos do Papa, que diga-se de passagem é também da esfera da esquerda latino-americana. Sim, fazem-me rir esses esquerdistas politicos e religiosos que acabam todos por entrar na linha. O problema é que CV perdeu muito com essa gente da esquerda revolucionaria e não é tão cedo que sairemos deste buraco. E' que todos os caboverdianos directa ou indirectamente foram depois de 74/75 formatados cultural e intelectualmente pelo socialismo de Cuba e da União soviética.

Enfim a Igreja catôlica tem também o seu lado negro? Claro que tem, mas é mais a nivel mundial, do que propriamente em CV, onde globalmente tem um legado histôrico e cultural positivo. Mas pactuou com o colonialismo, com o fascismo e com os senhores da escravidão. Isso também tem de ser dito!!!

Mas o socialismo e o comunismo fizeram mais estragos mundialmente, logo também em CV. John Mattos

Álvaro Ludgero Andrade disse...

Prezado João, um abraço dos States e obrigado pelo seu comentário. Eu acredito que a religião é cultural e gosto muito de diferenciar a prática religiosa da prática cristã. No caso em apreço, acho positiva a assinatura do acordo, mas o que questiono é o seguinte: a sua incompatibilidade com um Estado laico nos termos em que está redigido, defendendo a abertura das mesmas possibilidades às demais confissões religiosas que respeitam a matriz cultural cabo-verdiana e que ajudam a sociedade e a sua inconstitucionalidade quanto ao ensino de uma única religião no ensino público. A Const. diz no artigo 50: Artigo 50o
(Liberdade de aprender, de educar e de ensinar)
1. Todos têm a liberdade de aprender, de educar e de ensinar. 2. A liberdade de aprender, de educar e de ensinar compreende:
a) O direito de frequentar estabelecimentos de ensino e de educação e de neles ensinar sem qualquer discriminação, nos termos da lei;
b) O direito de escolher o ramo de ensino e a formação;
c) A proibição de o Estado programar a educação e o ensino segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políti-
cas, ideológicas ou religiosas;
d) A proibição de ensino público confessional;
e) O reconhecimento às comunidades, às organizações da so-
ciedade civil e demais entidades privadas e aos cidadãos, da liberdade de criar escolas e estabelecimentos de educa- ção e de estabelecer outras formas de ensino ou educação privadas, em todos os níveis, nos termos da lei.

Por exemplo, no Brasil, o ensino da religião é uma disciplina facultativa (matricula quem quer em vez de ter de se pedir a escusa de assistir) e é aberto a todas as confissões. Está inclusive isso expresso na concordata.

Graças a Deus sou cristão assumido, não tenho problemas a nível pessoal, mas gostaria que todas as religiões, à sua dimensão, tivessem o mesmo tratamento, reconhecendo-se assim o seu papel.

Mantenhas