quinta-feira, novembro 20, 2014

Homenagem ao meu velho, Nununo


Não celebro nenhum morto, não vou a cemitérios "visitar" ninguém apenas para enterros, não peço pela alma de ninguém morto. A vida humana termina na hora em que o ser humano deixa de respirar e a vida eterna continua, sem qualquer intervenção humana posterior. Tudo depende da decisão que cada um fizer em vida.

Esta introdução vem a propósito do meu pai que, se estivesse vivo, seria aniversariante hoje. O que vale é o que ele me deixou como legado. Publico aqui alguns excertos do livro que estou a escrever e que contém certos episódios em que ele e a minha mãe são protagonistas. Ficam essas "estórias" da minha história para quem quiser ler. Recomendo principalmente aos que o conheceram.

PS: Os textos não foram revistos ainda.




Os primeiros protestantes em Cabo Verde datam dos finais do século XIX, mas foi a partir de 1900 que há registos de alguma concentração em torno da figura de João José Dias. Natural da Brava, Dias emigrou para os Estados Unidos, Dias onde se converteu ao Cristianismo. Mais tarde, sentiu um forte desejo de regressar à sua terra natal e anunciar as Boas Novas que tinha recebido. Ainda não se falava da Igreja do Nazareno.

Nas décadas de 1930 e 1940, os missionários americanos instalam-se em Santiago com  o objectivo de cobrir a ilha maior e depois levar a obra nazarena às demais ilhas. No entanto, encontraram uma oposição feroz da Igreja Católica que usou todos os meios à sua disposição para impedir a implantação da Igreja do Nazareno, recorrendo inclusive à protecção política do Governo português.

A tentativa de chegar ao interior da ilha maior é praticamente obstaculizada já em São Domingos, um dos baluartes da Igreja Católica. Em Santa Catarina, mais precisamente na então vila de Assomada, os líderes católicos montaram uma inteligente estratégia para despistar e anular a invasão dos protestantes.  Criaram brigadas de jovens que se dirigiam amavelmente aos missionários protestantes e recebiam as Bíblias por eles oferecidas com o objectivo de dar ao povo a oportunidade de ler a Palavra de Deus,  até então vetada pela Igreja Católica.

Os missionários regressavam à Praia contentes por ver o povo ávido de Bíblias, particularmente jovens, mas desconheciam o que realmente estava a acontecer: os jovens, na sua esmagadora maioria católicos, recebiam as Bíblias e depois as juntavam todas para as queimar.  Um dos líderes dessa “queimada colectiva” era um fogoso jovem, ajudante de padre, natural de Cabeça Carreira, filho de um conhecido comerciante da região, chamado Pazinho, mas cujo  nome de baptismo era Ludgero Barbosa Andrade. Seu nome Álvaro Barbosa Andrade

Numa dessas queimadas, o jovem, que era sincero no serviço que prestava à sua Igreja Católica, decidiu ficar com uma das Bíblias às escondidas, motivado pela curiosidade de conhecer o que continha o livro. “O que teria esse livro que os protestantes distribuem de graça e a Igreja não quer nem ver?”, ter-se-á interrogado o jovem ao ficar com uma das Bíblias, depois ter queimado outras cinco.

As horas e os dias seguintes desse badiu de Cabeça-de-Carreira foram de intensa leitura, na ânsia de encontrar uma resposta à sua inquietação que, para além da curiosidade natural, terá sido despertada pelo próprio Espírito Santo que tinha um propósito com esse jovem que, desde há muito, revelara sinceridade e interesse pelas coisas espirituais.

No silêncio do seu quarto, entre a curiosidade, a ansiedade e a descoberta de histórias que ouvira de leve, num ou noutra missa ou na catequese, mas que nunca conhecera em profundidade, o então ajudante de padre descobriu o Deus que ele pensara estar a servir na igreja. De repente, começou a entender que Deus não se agradava com sacrifícios, penitências ou ritos religiosos mecânicos e sem qualquer base bíblica.

Entre dúvidas e descobertas, o jovem Álvaro entendeu que o Deus da Bíblia era um Ser que irradiava perdão e amor, e que a salvação do ser humano não advém de outra fonte que não seja uma confissão sincera a Deus. A sós, convencido pela Palavra que lia, Nununo, como era conhecido, rendeu-se e entregou a sua vida completamente, a Deus.

Os dias seguintes foram muito difíceis para o jovem que teve de enfrentar os seus antigos companheiros católicos e familiares. Era o início de uma longa caminhada, permeada de perseguições, incompreensões, desafios e despreendimentos. Já sem os pais, que tinham falecido, tomara a maior decisão da sua vida.

Com uma certeza total do que Deus colocara no seu coração, Álvaro Barbosa Andrade sai pelas ruas de Assomada e arredores anunciando as Boas Novas que acabara de conhecer através da leitura da Bíblia e da sua relação com Deus assente agora em orações e não em rezas. Uns pensaram tratar-se de um louco, os amigos o colocaram de lado porque sabiam que não podiam contar mais com ele para as festas, os antigos colegas de igreja apontaram-lhe o dedo por se ter “tornado protestante”.

Um dos capítulos mais marcantes dessa etapa aconteceu nos Órgãos, quando o meu pai procurou, como habitualmente acontecera no passado, a casa da sua tia Nininha, irmã da mãe dele, Maria Monteiro Andrade, para passar uma noite, numa viagem entre Assomada e Praia. Ela recusou receber o sobrinho, já que “na nha kasa protestante ka ta durmi”. Meu pai considerou ser essa a sua primeira grande tristeza como cristão.

Mas como Deus responde sempre, com o catre de dormir, uma lanterna e uma mochila nas mãos, foi reconhecido no meio da noite escura de Órgãos pelo amigo e enfermeiro Graça Lima, que lhe perguntou o que fazia com aquela carga e àquelas horas. A noite, claro, foi bem passada em casa do “anjo” que Deus lhe enviara.

É então que os missionários americanos e ingleses que então tinham chegado a Cabo Verde para instalar a Igreja do Nazareno, aproveitando o trabalho realizado por João José Dias e outros pioneiros, foram informados de um jovem “que falava como eles nas ruas da Assomada”. Dias depois, entre alguma curiosidade e a expectativa de que a semente lançada com a entrega das Bíblias tinha dado algum fruto, foram a Santa Catarina falar com o jovem que pela primeira vez tomou contacto com uma pessoa de outra religião que não fosse a católica.

A semente lançada no coração de um jovem germinara e brotara de tal forma que produziu, nesse longínquo ano da década de 1940, um fruto que por sua vez produziu muitos outros frutos através de pelo menos duas gerações em Cabo Verde e no exterior. Este episódio, que se fosse uma série televisiva podia chamar-se “O jovem solitário e a Bíblia”, revela a essência do Cristianismo, ou seja o encontro entre o Criador e a criatura, sem intermediários, estruturas religiosas, penitências ou sacrifícios.

(…)


Um dia, nos inícios dos anos 1960, no Sal, ao sair da igreja, o meu pai chegou ao carro e encontrou fezes nas portas para ira dos que o acompanhavam. Calmamente, como era seu timbre, tranquilizou os presentes dizendo: “não se preocupem, antes do próximo domingo saberemos quem foi o engraçadinho”. Dias depois, um jovem com a mão engessada chegou para pedir desculpas por aquilo que tinha feito. No dia em que fez a “brincadeira” tomou uma carinha de caixa aberta para ir dos Espargos à Santa Maria e, no caminho, colocou a mão de fora sem reparar que havia um poste com o qual veio a embater. Resultado: partiu o braço.
 


(...)
Mas antes, ou seja, antes de eu nascer, os meus pais viveram oito anos na ilha do Fogo, onde o trabalho de um pastor nazareno não era coisa para qualquer um, devido à extensão da ilha e às particulares características das duas gentes. A pé ou montado no cavalo denominado “campeão” por nunca ter perdido uma corrida, o meu pai e a minha mãe levaram o Evangelho a quase todas as localidades da ilha. As jornadas eram longas, o trabalho intenso, mas a grande comissão que recebera do seu Deus lhe empurrava para se multiplicar em várias frentes.

Caminhar 10 quilómetros a pé era uma prática normal, porque necessária para levar a Palavra. A ilha era um mundo, já por si grande, quente e com populações muito dispersas.

Um dia ele é chamado por uma família desesperada porque a filha de 14 anos estava com “xuxo no corpo”. Destruía tudo, nem vários homens juntos conseguiam detê-la, a família não sabia o que fazer mais. Tinha chamado o padre, o curandeiro, só faltava chamar o “pastor protestante”, quem sabe podia fazer alguma coisa... “já que ele diz que fala com Deus”...

Após algum tempo de oração, saiu com a Bíblia na mão em direcção à casa da moça que, à chegada, o meu pai viu estar claramente endemoninhada. Sem pronunciar palavra, apenas mostrou a Bíblia à moça que começou a gritar “porque te chamaram, porque vieste me perturbar, vai embora”, enquanto recuava, recuava, até cair praticamente inanimada.

Os demónios que perturbaram a menina de 14 anos não resistiram ao poder da Bíblia, a palavra falada de Deus. A moça, depois, foi alimentada e retomou a sua vida.

A ilha tinha muitos leprosos que viviam bem afastados da população. A doença não dava sinais de diminuição, o que provocava terror nas pessoas e, principalmente, nas famílias dos doentes.

Um dia, ele foi chamado para atender um leproso que ficou curado depois da oração a Deus.

(…)

Apesar de ter nascido  num lar cristão, portanto com marcantes contornos religiosos, liderado por um pastor evangélico e com uma prática diária de igreja, aprendi em casa a tratar a todos por igual porque “todos fomos criados por Deus”, embora nem todos sejamos “filhos de Deus”,  por este estatuto pertencer àqueles que aceitam a Deus como Pai. Da empregada, a quem nunca podia dar ordens, aos colegas dos meus pais, do companheiro da escola ao professor, independentemente da fé das pessoas, todas deviam ser tratadas de igual forma.

Enquanto a minha mãe era mais reservada e dedicada à gestão do lar – que dirigia com mau dura e chicote -, o meu pai mantinha interessantes relações pessoais na cidade, eventualmente devido ao facto de ter ido para São Vicente aos 9 anos de idade, onde o badiu conheceu uma sociedade muito aberta. Desde criança abraçou o futebol, cujas primeiras lembranças remontam  à década de 1920 quando para entrar no hoje Estádio Adérito Sena carregava as botas do lendário Djô Figuera, figura de proa do Mindelense de então.

Nessa época terá começado a sua paixão pelo vermelho, que o tornou adepto ferrenho do Mindelense e do Benfica, de Portugal. Em Santiago, onde viria a jogar mais tarde e receber a alcunha de “Tubarão”, por ser um defesa impiedoso, militou no Sporting e no Vitória, clubes verdes. Ou seja, apesar de vermelho de coração, não era fundamentalista.

O desporto, sempre presente em casa através dos relatos radiofónicos e do jornal português A Bola, do qual foi assinante por cerca de três décadas, constituiu um elemento de aproximação com todos, muitos deles sem qualquer religião ou crença. Desde que me conheço, vi o meu pai e a mãe se relacionarem por exemplos com católicos, participando em aniversários e trocando visitas, com respeito de ambos os lados.

Não é por acaso que um dos meus melhores amigos, que conheci aos meus seis anos de idade, seja católico praticante, com o qual mantenho uma estreita relação como existia entre os nossos pais. Com muita amizade e respeito, tal como ensina a Bíblia.

Figura incontornável de São Vicente, embora natural de São Nicolau, o padre Bernardo era um amigo pessoal do meu pai. Por ocasião do Natal, a visita dele era sempre esperada por mim em casa, não porque havia festa, mas porque deliciava ver um pastor nazareno e um padre católico sentados na sala em amena cavaqueira.

A curiosidade era maior quando o padre Bernardo passou a ser meu professor de Latim, e o foi por dois anos. Queria saber se falavam de mim, se ele se queixava de mim ao meu pai, mas apenas descobri que terá dito que “eu era bem brincalhão e que fazia falta a qualquer grupo”. Fiquei sem saber se era um elogio ou uma crítica subliminar à medida do sábio padre.

Assistir a uma cena dessas, na sala de visitas, era uma experiência marcante para um jovem que, em muitas ocasiões, questionou sobre a redoma de vidro que, na maior parte dos casos, se transformam as comunidades religiosas, particularmente as que possuem uma estrutura rígida e tradicional. Em frente, dois homens, maduros, um casado com filhos, o outro não, representando duas religiões que, desde sempre, foram apresentadas como sendo antagónicas.

Nesse momento, de caras lavadas e em amena cavaqueira, os dois homens saltavam de tema em tema, abordavam a cidade onde exerciam a sua missão, manifestavam a sua tristeza e preocupação pelos “novos tempos em que os bons valores se perderam”, trocavam ideias sobre a melhor forma de levar o Evangelho a outros. A formalidade desaparecia e era visível uma relação alicerçada nos genuínos ensinos de Cristo, independentemente de ambos terem pontos de vista diferentes em vários aspectos.

(…)

Meu professor de Latim durante dois anos – período em que aprimorei o meu português – o padre Bernardo confessou-me uma vez que a única diferença entre ele e o meu pai era que ele usava batina e o meu pai fato, que por sinal detestava. Para ambos, a fé cristã revelava-se na forma como amamos o nosso próximo e não no proselitismo de apenas comungar-mos com os que professam a mesma fé que nós.

(…)

Nununo, como era conhecido pelos mais próximos, era o humor em pessoa. Para ele, o humor era um estilo de vida e não um simples momento alegre ou de contar anedotas.

A frontalidade era uma das suas principais características. Nunca o vi mudar de opinião devido às transitórias circunstâncias da vida. Talvez o tenho feito - quem não o faz!!?? - mas a memória que tenho dele é de uma pessoa cuja palavra era mais importante do que a posição social, conta bancária ou pretensões.

Nununo sabia entender as pessoas, via na alma, dizem alguns. Às vezes a paciência não abundava - que o digam a Lidia, o David e a suas pernas -, mas no meu caso, talvez devido à idade avançada, encontrei nele alguém que me entendia, embora não estivesse sempre de acordo. Muitas vezes batemos de frente em conversas sobre política, futebol e religião.

Por exemplo, engoliu a seco a minha opção pelo jornalismo e não poucas vezes me pediu que tivesse cuidado, principalmente na cobertura de assuntos políticos.

Poderia escrever páginas e páginas de recordações do meu pai, mas vou deixar aqui apenas duas referências que considero marcantes. Em Outubro de 1999, eu estava em Moçambique e ele adoeceu. Nesse período comentou com um familiar: "o Alvarito não vem todos os dias visitar-me, mas sei que posso chamá-lo a qualquer momento".

O segundo episódio aconteceu no seu último ano de vida. Depois de uma discussão banal, ele me acusou sem razão. Quando à tarde fui apanhá-lo na Pracinha da Escola para levá-lo à casa, a primeira coisa que fez foi pedir-me desculpas. Aos 83 anos! Um pai pedir desculpas ao filho??!!
Isso não é para qualquer um. Só para homens com H grande e tamanha verticalidade.

Por isso, Deus lhe concedeu aquele que talvez foi o seu último pedido. No dia 31 de Dezembro de 1999, disse que tinha terminado a sua missão aqui na terra e que se Deus quisesse podia levá-lo em paz. Três dias depois ele falecia, sem chorar nem sofrer.

Chorei pouco com a partida dele porque sabia que ele estava feliz onde se encontrava. Mas depois de tantos anos tenho saudades do pai! E sinto falta das suas orações, sempre às 3 da manhã!

1 comentário:

Lidiana Medina disse...

Oh Alvaro que belo apontamento. Gostei pois não conhecia todas essas facetas do meu saudoso tio, pois vivíamos em ilhas diferentes, pelo seu trabalho de espalhar a fé, e daí não ter a oportunidade de estar com ele de perto. Mas uma coisa dele me lembro "muito humorista". Descanse em paz Tio Nununo. Hás de ser sempre recordado.