sábado, julho 04, 2015

Sou da Geração I, com muito orgulho!


Tinha pouco mais de nove anos quando, pela primeira vez, ouvi que havia "terroristas" e luta nas matas da Guiné-Bissau. Estava de regresso da escola e fazia o trajecto entre Chãzinha e Lombinho, em S.Nicolau, onde morei por seis anos. "Até que enfim aquele terrorista morreu", foi a frase dita por uma de duas senhoras vestidas de preto, viúvas, suponho, e que nunca esqueci. Lembro-me como hoje, até do lugar. Ela se referia à morte de Amílcar Cabral.

Pouco a pouco, através do meu pai, comecei a conhecer um pouco mais sobre a luta pela independência de Cabo Verde e sobre Amílcar Cabral. Os dois eram amigos e vizinhos, um de Cabeça-de-Carreira, outro de Achada Falcão, jogaram a bola juntos e a minha mãe se lembra dos dois em amena cavaqueira na casa dos meus pais, no coração de Assomada. O meu velho chegou a ser portador de uma carta secreta de Cabral a um elemento da clandestinidade em S.Vicente (que ainda está vivo em Lisboa), apesar de bem cercado pela Pide.

Quando chegaram os tempos da "revolução", acompanhei, com a curiosidade de um menino de 10 anos, as manifestações em S.Vicente, as "batalhas" na Zona Libertada, as confusões no quartel, a tomada da Rádio Barlavento, os comícios na Praça Estrela, etc. Com muito pouca ou mesmo quase nenhuma, informação sobre a luta de libertação, Amílcar Cabral era, para mim, o grande herói. Mais tarde soube que foi mesmo.

Na onda da independência, com os pais em Lisboa em tratamento, colei muitas bandeiras de papel, que não sei onde nem como consegui, nas paredes e na garagem da casa onde morávamos. Ajudei, com balde de cola na mão, a colar umas grandes fotos de Cabral nas paredes do templo da Igreja do Nazareno no Mindelo. Quase um sacrilégio para muitos, mas a independência era maior do que qualquer religiosidade hipócrita: a Igreja do Nazareno, em particular, era também vítima do regime colonial ao ser considerada menor em relação à igreja-Estado. Estava impedida, por exemplo, de contruir os seus templos no centro das cidades e vilas, e as torres dos mesmos não podiam ser muito altas "para evitar que fossem vistas de longe". Eu, por exemplo, assim como todos os alunos, era obrigado a assistir às aulas de religião e  moral católicas. A igreja acolhia também um povo que queria a liberdade.

Apesar de ter apenas 11 anos na altura, nunca esquecerei o dia 5 de Julho de 1975. Poucos devem saber, mas à zero hora, acompanhei o meu pai e o amigo António Graça, mais tarde deputado do MpD e empresário no Sal, ao templo da Igreja do Nazareno para içarmos a primeira bandeira nacional em São Vicente, enquanto eram tocados os sinos na torre, em saudação à independência nacional. A bandeira foi feita pelo próprio António Graça. Inesquecível!!!


Nunca pertenci a nenhuma organização, para além da Igreja do Nazareno, mas sem qualquer dependência institucional, e da Associação de Jornalistas de Cabo Verde, Jamais participei em qualquer evento de massas ou partidário. Aliás, lembro da primeira vez em que, como todos os alunos do então ciclo preparatório, em 1977, tive de participar num desfile por ocasião do Dia das Crianças. Entretanto, após a caravana sair do Liceu Velho em direcção à Rua de Lisboa, "desertei" na primeira esquina entre o Café Algarve (Rego) e a Casa do Leão, directamente para o Quintal do Kevin para aproveitar o feriado e jogar à bola até à noite.

No entanto, sempre me orgulhei da luta pela independência, dos heróis de carne e osso, com virtudes e defeitos, com acertos e erros, e acompanhei com particular atenção todo o processo de afirmação de um país - porque Nação sempre fomos - chamado de inviável por muitos de fora e por algumas sereias ressabiadas no próprio arquipélago. Ainda retumbam nos meus ouvidos as histórias de fome e mortes, de falta de escolas, de falta de atenção médica básica, da emigração forçada, dos abusos e das mentes cativas.

Vi o que de muito bom foi feito e orgulho-me de todo o processo, mas também vi coisas tristes que gostaria de não ter assistido. Por exemplo, lembro-me de ir com o meu pai à prisão quando ele visitava os amigos dele - pais de amigos e colegas meus - e demais presos na célebre onda anti-trostkistas de 1979. Já adulto e, como jornalista, acompanhei o advento da democracia,  e, mesmo fora, sigo o dia-a-dia da minha terra.

Aprendi desde cedo a respeitar a opinião contrária, mas também a manifestar a minha. Alguns por aí querem analisar a história de forma retrospectiva, apresentando uma narrativa que, nada mais é, do que a justificação para tentar limpar a história e os seus protagonistas, além de ganhar votos a curto prazo e likes nas redes sociais ou palmadas nas costas num café qualquer. Qualquer um, com dois dedos de testa, sabe que a história não pode ser analisada à luz do contexto de outros tempos que não aqueles em que os factos aconteceram.

Quando vejo gente a analisar, por exemplo, as decisões e atitudes de Amílcar Cabral e companheiros, no meio da luta contra um império e entre duas potências mundiais que se digladiavam entre si, como se eles fossem governantes de uma república democrática e estável, dá dó, e concluo que, na verdade, os diplomas universitários não aumentam massa cinzenta de ninguém, apenas fornecem alguns conhecimentos, que podem ser bem ou mal usados. É uma narrativa perniciosa que, por outro lado, por ser de memória tão curta, não passa de um determinado círculo de influências, bem pequeno e sem pernas para andar.

Também há por aí gente que está a "oferecer" a sua parte do 5 de Julho. Muito obrigado, que a tomo com muito orgulho, como cabo-verdiano, africano e cidadão do mundo, aliás como a minha Nação crioula. Aprendi a respeitar todos aqueles que antes e depois se despojaram dos seus interesses projectos pessoas para assumir a causa pública, com honestidade, entrega e serviço. Alguns há que se seviram da causa, mas são apenas a excepção para confirmar a regra.

Sou da Geração I, da Independência, e com muito orgulho, mas sem vaidade, nem basofaria. Norberto Tavares escreveu, acertadamente, "cada um de nós é um Cabral", e bom seria que assim fosse, ou seja, que pelo nosso pensamento próprio - não copiado ou reciclado . pudéssemos contribuir, todos, para uma melhor e próspera Nação.

O que não gosto? Que não honramos, que continuamos a não respeitar como devia ser e que não colocamos no lugar que merecem os nossos  heróis. Mas a história, um dia, sem a narrativa dos "emergentes" de mente curta, falará mais alto.

A terminar: gostaria, mesmo, que o nosso povo olhasse mais para Deus, seríamos, sim, uma nação bem-aventurada!!!

5 de Julho, meu orgulho, sempre!

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