terça-feira, abril 26, 2016

O primeiro dia da caminhada da liberdade


1992: Na era pré-computador pessoal, a minha máquina de escrever eléctrica. Em qualquer lugar, eu escrevia.
Há 25 anos, num dia como hoje, vi nascer, sob um sol radiante de Abril, um produto jornalístico que marcou defintivamente a minha vida profissional e pessoal. Em jeito de preâmbulo,  permitam-me dizer, sem vaidade mas com muito orgulho, ter sido esse dia um marco na luta pela afirmação de uma imprensa livre em Cabo Verde.

A 26 de Abril de 1991 nascia o jornal A Semana, uma das primeiras pedras a “brotar” do chão seco das ilhas para dar corpo ao edifício da democracia cabo-verdiana. O Governo saído das eleições de 13 de Janeiro mal tinha completado os 100 dias de graça e já tinha às pernas um jornal disposto a marcar a diferença: ser também ele um produto dos novos tempos e não filho de nenhum pai “primeiro e único”.

Lembro-me quando, num encontro qualquer, com aquele seu ar descontraído de quem convida a uma aventura perigosa como se fosse para um pique-nique, o Jorge Soares a dizer-me para fazer parte do projecto do jornal. A minha experiência como jornalista profissional era de apenas oito meses, ainda gatinhava nessa arte,  embora esse pequeno periodo na então Tevec estivesse  a ser muito intenso e produtivo.

Como qualquer caloiro amante do jornalismo disse que sim, sem discutir nada, nem o que ia fazer e muito menos qualquer subsídio ou avença, como se dizia na altura. O que sei é que ainda fui a tempo de participar na eleição do título do jornal e fiz "campanha" contra o próprio Jorge que defendia o nome Correio das Ilhas. Ganhou o A Semana. O Jorge é assim, democrata convicto. Comecei bem, pelos vistos.

Dois dias antes do primeiro número sair à rua, o colega Julio Vera-Cruz Martins foi agredido por um membro do Governo quando fazia a cobertura da instalação dos novos dirigentes nas residências oficiais. Era um sinal de que a luta seria enorme, frente a um poder a fazer a sua natural luta de afirmação, num mercado publicitário praticamente inexistente e numa situação completamente nova, tanto para os poderes públicos, em particular o Governo, como para os profissionais de comunicação. E para a sociedade, também.

Moderador de um dos debates da Fundação Friedrich Ebert, tendo como palestrante o actual Prsidente da República
A trajectória

Desse dia até Julho de 2000, quando decidi sair de Cabo Verde, vivi intensamente cada dia o jornal, mesmo não tendo um salário ou avença regular até o ano de 1994, quando as coisas começaram a melhorar. Pelo meio, participei como  moderador de seminários de algumas organizações não governamentais cujo debate era depois publicado, como uma forma creativa de ajudar a superar a crise financeira do jornal e nas despesas da casa.

Fiz de tudo: escrevi sobre todos os temas, responsabilizei-me pelo desporto, fiz de re-writter, assumi a edição vezes sem conta, fui fotógrafo, carreguei papel, transportei jornal, digitei textos, fui condutor, engoli sapos e dos grandes, nunca escolhi os temas que davam a capa ou a página 2, nem promovi o meu trabalho pessoal, não tive problemas em assumir papel secundário em assuntos que eu tinha investigado, paguei por coisas que não fiz. Mas nunca fui desonesto, mau carácter, preguiçoso, desleal, nem me aproveitei do jornal para nada.

Mas não me importava. O sonho de afrmação de um produto marcado para morrer, a juventude e a vontade de fazer o que mais gostava superavam as perdas tanto financeiras como de tempo para estar mais com a família. Como brincava o Lulu Cardoso da Silva, eu tinha 17 trabalhos e por isso, graças a Deus também,  provisão nunca faltou. Fazia televisão, apesar de demitido duas vezes por ser incómodo, editava revistas, escrevia textos, era correspondente de jornais internacionais e da Voz da América, dava aulas, fazia consultoria, os tempos exigiam e as repostas tinham de surgir. O meu filho cresceu entre aquelas mesas...

Ameaças não faltaram – inclusive que iam queimar o carro pessoal do Jorge -, cartas anónimas se amontoaram na gaveta, chegar à casa de madrugada exigia um cuidado redobrado, não sei quantas vezes encontrei as rodas do meu carro furadas, as quatro, os desfiles pelo tribunal se multiplicaram, amigos começaram a acreditar nas bocas que insinuavam alinhamentos partidários e políticos, investigações sobre eventuais ligações ao partido único multiplicavam-se. Mas como quem não deve não teme… Para a risada geral, um dos investigadores dessas pretensas ligações, cujo nome não revelo porque não está entre nós, disse-me que os dois jornalistas que na verdade tinham feito fretes à secreta já estavam alinhados com o novo poder!!!

Eram tempos difíceis, mas necessários. De um lado, ajudaram a desbravar o caminho e, do outro, encurtaram a minha aprendizagem na profissão e, principalmente, na minha afirmação como jornalista. Aprendi muito, com todos os colegas a quem pedia que me corrigissem, cedo entendi que o que aprendi em casa era pedra basilar da profissão - verdade - e procurei-a sempre, e descobri que muito mais importante do que se escreve ou de como se escreve, é criar uma relação verdadeira com fontes sérias e seguras.

Como sempre afimei nos círculos mais próximos, independentemente de quem estivesse no poder nessa primeira década, aqueles anos teriam sido mais ou menos semelhantes porque todos estávamos  a aprender. Creio que no jornal, aprendemos bem cedo e rapidamente, muito mais e melhor do que os políticos, de todos os quadrantes, e da própria sociedade. Me desculpem se isso roça a vaidade, mas não é.



Testes de afirmação

Lembro-me do primeiro grande teste do jornal, nas vésperas das primeiras eleições autárquicas de 1992. Uma entrevista ao então candidato do MpD, Jacinto Santos, em resposta a outra do candidato do PAICV, levou a Grafedito, propriedade daquele partido, a decidir pela suspensão da impressão do jornal. Jorge e eu fomos lá de madrugada e o jornal saiu à rua na véspera das eleições.

Mais tarde, aquando da primeira cisão do MpD, fomos conotados com Eurico Monteiro e o PCD, na eleição do secretário-geral do PAICV pós-1991 fomos acusados de fazer campanha por uma eventual candidatura de Corsino Tolentino, mais tarde os “conselheiros populares” disseram que ajudamos Jacinto Santos a criar o PRS e a fomentar o escândalo da Enacol, finalmente, fomos tachados de promotores da então List J, quando José Maria Neves concorreu contra Pedro Pires à liderança do PAICV.

Pelo meio, a supressão da publicidade das empresas públicas, que dominavam o mercado, a insistência de muitos membros do Governo em não falar com o jornal, as pressões da oposição para que o A Semana fosse o seu porta-voz, os processos judiciais com a benção da Procuradoria-Geral da República calejaram as nossas mãos, ao mesmo tempo que a maturidade democrática de Cabo Verde dava sinais de crescimento. É bom dizer que o poder de então também jogou a toalha ao ver que o jornal não estava  serviço de ninguém, mas consciente do seu papel. A pouco e pouco, a tensão distendeu-se e todos ganharam.

Tanto com Jorge Soares, um sonhador resiliente,  como Filomena Silva, guerreira com todas as letras, à frente, o jornal foi fazendo o seu caminho, que, volto a pedir que me desculpem, foi pioneiro no surgimento de uma imprensa livre em Cabo Verde. Houve dias de desânimo total, registaram-se muitas perdas pessoais, as portas por pouco não se fecharam, muito gente desisitiu, mas o A Semana seguiu e, com erros e muitos acertos, afirmou-se definitivamente como um farol para a imprensa das ilhas.

Uma nota: com tanta pressão e processos judiciais, uma janela foi aberta e o Jorge Soares decidiu exilar-se nos Estados Unidos, tendo recebido o tal estatuto pelas autoridades americanas.

Como disse anteriormente, deixei o jornal e o país em 2000.

Nessas Bodas de Prata, ergo a taça a todos que abraçaram esse projecto apelidado por muitos de “uma aventura sem futuro” em 1991. Com todos aprendi, com todos sofri e com todos venci, de todos tenho as melhores recordações. Ao Alírio Dias de Pina, actual director e o único que tem os 9.300 dias às costas, um “até sempre” e que continue o sonho.

O jornal comprovou, uma vez mais, uma verdade absoluta: “o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã”.


O sucesso honesto é dos que sonham e trabalham, melhorando sempre. Se fosse possível regressar no tempo, voltaria a abraçar o projecto A Semana, do qual sou filho e ao qual devo muito, como profissional e como homem.

2 comentários:

ds disse...

Você , um jornalista com J maiúsculo ! Meu sempre irmão Alvarito.
Um abração,
Tchuney

Álvaro Ludgero Andrade disse...

Grande suspresa meu irmão, só hoje vi o teu comentário. Manda-me o teu contacto. Sempre pergunto ao João por ti… Espero que tudo esteja a correr bem. Dá um salto aqui, eu moro a 3 horas do João. Deus contigo.

Obrigado pelas palavras, vindas de quem vêm

Alvarito